Ética, Velocidade e Processo Penal: Limites de um Direito Penal Económico
Descargue el artículo completo en PDF. | |
22_etica_velocidade_e_processo_penal.pdf204kB |
Palavras-chave: Ética – modernidade – velocidade – processo penal – Direito Penal Econômico.
Sumário: O estudo aborda a atual problemática atinente ao esforço em ultrapassar as barreiras estanques das disciplinas científicas, mormente do monólogo jurídico na área dos fundamentos do Direito Penal Econômico (DPE). Para isso, lançamos mão da análise do atual estágio do conhecimento moderno reflexivo que têm como um claro sintoma a alavanca da velocidade, com seus vários desdobramentos. Reflexos estes que no tocante ao processo penal opera um déficit de garantias em busca de uma eficiência autoritária, principalmente quando lidamos com novos ambientes de incriminação – DPE, produtos de uma voraz dinâmica expansionista que (re)potencializa discursos inquisitoriais, e falsamente protege novos bens jurídicos. Enfim, deflagrada está uma crise de sentido do agir humano (ética) que permeia as mais variadas relações sociais e, por conseqüência, olvidam em suas maquinarias institucionais o elemento vital.
I. Prévia sobre disciplinas
A Carta de transdisciplinaridade, adotada no I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, realizado em 1994 no convento de Arrábida em Portugal alertava em seu preâmbulo: a vida está fortemente ameaçada por uma tecnociência triunfante que obedece apenas a lógica assustadora da eficácia pela eficácia.
O enfoque transdisciplinar (ou para além dos esquemas discipli-nares auto-referenciais) está inserido na própria dinâmica do sistema nervoso central humano na interação dos hemisférios do cérebro. É neste diapasão que se firma o compromisso de um novo ideário superador dos tradicionais ancoradouros do saber nas chamadas ciências criminais, notadamente no que tange à complexa temática da criminalidade dita econômica. Tal arcaísmo, notadamente, apenas gera um modo de produção insuficiente, para não dizer dissimulador, no que atine às demandas atuais.
Importante insistir na demonstração da defasagem entre a nova visão do mundo que emerge do estudo dos sistemas naturais e os valores que ainda predominam na filosofia, nas ciências do homem e na vida da sociedade moderna baseada, fundamentalmente, num determinismo mecanicista. Daí deflagra-se o deletério enfraquecimento da cultura em detrimento da onipotente tecnociência “que tudo pode”.
A modernidade tem como um dos seus pilares a separação entre cultura e ciência, especialização esta que o olhar para além das disciplinas procura ultrapassar, recompondo a unidade da cultura e encontrando o sentido inerente à vida. É, pois, recusando-se qualquer sistema fechado de pensamento, qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição ou ainda dissolvê-lo nas estruturas formais que se deve buscar a troca dinâmica (complementaridade) entre ambos os enfoques, e, não, a sua estéril oposição, onde tal encontro permita pensar uma nova visão da humanidade.
Abandonase justamente o paradigma moderno do unívoco caminho de acesso à verdade e à realidade, onde a atitude discursiva deve, então, ancorarse numa lógica dialogal entre ciência e tradição, tornálas interativas, a fim de contribuir para uma nova abordagem científica e cultural. Uma necessária reivindicação transdisciplinar passa pelo rompimento das fronteiras disciplinares – meros pontos de referência que jamais devem cegar a busca por saberes alheios virtuosos à compreensão do objeto de estudo – que compartimentalizam, atomatizam e afogam as possibilidades de integração das inúmeras áreas do saber.
O significado de confluência de vários ramos do saber no estudo de determinada problemática gera o efeito desestabilizador tanto da dicotomia sujeito-objeto quanto à disciplina e suas especialidades. O método dialógico, segundo MORIN, seria o ponto de partida na construção de um saber que ultrapasse a compreensão especializada da modernidade, uma vez que dispõe sobre a relação complexa entre compreensão e explicação. Assim, para a realização de uma análise que atenda minimamente à compreensão e debate do tema aposto, fato social de tamanha complexidade – Direito Penal Econômico – e como tal insuscetível de explicação satisfatória por uma única disciplina, por óbvio, fazse imperativo ultrapassar o campo específico da ciência jurídica. Idéia esta que se aliará ao que MORIN chama de interpoli-transdisciplinariedade, considerandose o devido esclarecimento quanto à polissemia e imprecisões terminológicas extraíveis destas definições.
O primeiro termo pode, pura e simplesmente, denotar a colocação de diferentes disciplinas em volta de uma mesma mesa, ou, em sentido forte, ao qual nos referimos, significar a troca e a cooperação para a elaboração de um todo orgânico disciplinar. A multidisciplinariedade, por sua vez, o significado a que nos transportamos não é aquele atinente à mera justaposição de especialidades, mas, sim, a associação de disciplinas por conta de um projeto/objeto que lhes sejam comuns. De outra parte, no que concerne à transdisciplinariedade, tratase erroneamente, por vezes, de esquemas cognicíveis que podem atravessar as disciplinas, freqüentemente, a tal virulência que as deixam em transe; cremos, entretanto, que o desafio da transdisciplinariedade está em gerar uma civilização que, por força do diálogo intercultural, se abra para a singularidade de cada um e para a inteireza do ser.
Neste caminho, podese adotar cada termo isoladamente desde que estes complexos só desempenhem um fecundo papel na história das ciências se implicados a realizar a cooperação sobre um objeto e, primordialmente, sobre um projeto comum, para além de uma categoria organizadora dentro do conhecimento científico – disciplina – automatizada e esterilizada.
Vamos ao encontro, não obstante, nos dizeres de MORIN, de um conhecimento em movimento, de vaivém, que progrida indo das partes ao todo e do todo às partes. Entretanto, alguma fecundidade disciplinar não pode ser descartada na medida em que possui a virtude de circunscrever determinada área do conhecimento, sem a qual o conhecimento tornarseia intangível. O que se deve é atentar ao perigo da hiperespecialização do pesquisador no tocante ao risco da “coisificação” do objeto estudado, negligenciandose, assim, as ligações e solidariedades com o universo do qual ele faz parte.
Procurase, assim, uma profunda penetração multifocalizadora, multidimensional, em que se achem presentes as dimensões de outras ciências e onde a multiplicidade de perspectivas particulares, longe de abolir, exija a perspectiva global. Preocupamonos, de outro modo, com a tentação, de todo e qualquer empreendimento que adote este caráter inovador, dos reducionismos e das transposições teóricas. Qualquer construção teórica desenvolvida neste universo somente deve ser encarada, como escreve FIGUEIREDO na linguagem psicanalítica, como sendo a possibilidade de fazer do estranho um convidado estratégico que nos permite escutarmonos de um outro lugar e de, nessa escuta, quem sabe, fazermonos outros para nós mesmos. Recorrese, com isto, ao que RAMALHO NETO vai chamar de vigilância epistemológica necessária à manutenção do respeito à especificidade dos campos e dos enfoques teóricos das disciplinas envolvidas, assim como das diversas correntes interiores a essas disciplinas.
Tratase de ajudar na elaboração de uma nova forma de conhecimento que, atualmente, começa a conseguir estabelecer pontos comunicantes entre ciências e disciplinas. Hábil, suma, para a construção de um objeto e de um projeto ao mesmo tempo interdisciplinar, polidisciplinar e transdisciplinar que permita o intercâmbio, a cooperação e a policompetência entre os diversos ramos do saber.
A premência da discussão dos limites do saber, bem como dos próprios valores contemporâneos que o envolve, impõe uma nova postura dos investigadores, distante da crença na unidade de discurso e na potência dos métodos até agora forjados. Do contrário, a postura que ofusca o olhar do pesquisador apenas pode levar a uma intolerância epistemológica.
As barreiras que se abatem sobre este viés no âmbito jurídico são evidentes, parecendo estar comungadas a uma prepotência, para não dizer um autoencantamento doentio, atrelada(o) a um saber puro e autosuficiente. Na medida nos propomos a confrontar com outras áreas do conhecimento é que naturalmente se cultiva a esperança de tornar mais do que evidente nossas radicais limitações acadêmicas, reflexo insofismável da própria incompletude do humano.
II. A ‘Arriscada’ Ciência do Indecidível
Desde as formas contrastadas do contrato social, sejam eles a partir da desconfiança-insegurança de Hobbes ou desde a figura da confiança (Locke, Kant e Rousseau), o risco sempre esteve no cerne dos estudos sobre a sociedade moderna. É, todavia, no início do século XX que a outrora proteção minimalista aposta pelo Estado ao todo social dá lugar aos anseios de uma garantia de certa qualidade de vida. Falase, então, no Estado-providência ou Estado-social.
Hodiernamente, mais, a desagregação deste modelo assistencialista evidencia claros sinais de fadiga. Segundo OST, a risikogesellschaft toma o lugar do Estado-providência e voltase a falar de segurança em vez de solidariedade. Em verdade, mais precisamente desde a catástrofe de Chernobil – a mais trivial descrição do presente, diria – toda a violência que os seres humanos aos demais infligiam estava subjulgada à categoria do “outro”. Dirá BECK, que aí reside a emergente força cultural e política de nossa era ao ponto de afirmar que ha llegado el final de los otros.
Vivenciamos um ambiente regido pelo medo, claro produto do máximo desenvolvimento do modelo moderno de sociedade que, por certo, não rompe, em absoluto, com a lógica do desenvolvimento capitalista, sobretudo o eleva a um outro nível. A antiga contraposição natureza e sociedade, herdada do XIX que a colocava como simples objeto externo pronta para ser dominada ou ignorada, passa hoje em dia a configurarse num fenômeno interno e produzido.
Este amargo diagnóstico apenas declara a fissura dos modelos jurídicos que não mais captam os fatos. Las preguntas más evidentes cosechan encogimientos de hombros. Los tratamientos médicos fracasan. Los edificios científicos de racionalidad se vienen abajo. Los gobiernos tiemblan. Los votantes indecisos huyen. Y todo esto sin que las consecuencias que sufren los seres humanos tuvieran algo que ver con sus acciones, sus daños con sus obras, y mientras que para nuestros sentidos la realidad no cambia en absoluto (…). A la base de esto se encuentra la idea de que somos testigos (sujeto y objeto) de una fractura dentro de la modernidad, la cual se desprende de los contornos de la sociedad clásica y acuña una nueva figura, a la que aquí llamamos ‘sociedad (industrial) del riesgo’.
O futuro que começa a se perfilar é dominado pela lógica da produção de riscos que esmaga a ganância de poder do progresso técnico-científico. As antigas coordenadas e fontes de significado coletivas de uma modernidade industrial projetada desde a segurança, a fé no progresso e na ciência estão inelutavelmente exaustas. Certamente o risco sempre esteve presente, intimamente ligada a qualquer relação social.
Não obstante, três fases claras OST coloca como fundamentos para a compreensão prudente desta transformação. Numa primeira fase, a da sociedade liberal do XIX, o risco assumia a forma de acidente (acontecimento externo e imprevisto). A reação correlata, pois, davase numa perspectiva curativa-retroativa (indenização) ou prospectiva (seguro individual ou sistema de previdência). Já a segunda etapa que despontou no início do XX era norteada pelo viés da prevenção, ou seja, desde um risco doravante objetivável e mensurável, pretendiase reduzir a probabilidade de sua ocorrência. Aqui, ao domínio científico do risco, somase a esferase jurídica, generalizandose, o direito à segurança. Em suma, o risco figurava como acontecimento estatístico, mensurável por probabilidades e socialmente suportável pela mutualização da responsa-bilidade dos danos. Atualmente, abandonamos aquela sociedade providencial do risco dominado para adentrarmos na fase do risco enorme, catastrófico, irreversível, imprevisível, que frustra nossa capacidade de prevenção e domínio, traidor de nossas certezas, saberes e poderes.
Como sintetiza BECK, os riscos desde a segunda metade do século XX ya no se limitan a lugares y grupos, sino que contienen una tendencia a la globalización que abarca la producción y la reproducción y no respeta las fronteras de los Estados nacionales, con lo cual surgen unas amenazas globales que en este sentido son supranacionales y no específicas de una clase y poseen una dinámica social y política nueva. No limiar do que consideramos risco aceitável ou inaceitável, tal tornouse duplamente reflexivo, pois produto das nossas opções tecnológicas e também fruto de nossos modelos científicos e juízos normativos, na medida em que escapam às instituições que se propuseram a controlálos. O sistema judicial e a política são obscurecidos por debates e conflitos que se originam do dinamismo da sociedade de risco.
O risco, além de ser um produto derivado e um efeito perverso de nossas decisões, é marcado pela ‘glocalidade’ (reflexos globais e locais ao mesmo tempo) e pelo efeito social de bumerang que faz saltar pelos ares, por exemplo, os antigos esquemas de classes. Os riscos afetam, mais cedo ou mais tarde, tanto quem os produziu quanto aqueles que eventualmente deles se aproveitaram.
Com a tendência igualizadora e globalizante, passando pela unidade entre culpado e vítima, a sociedade de risco não é uma opção que se possa escolher ou rejeitar no decorrer de escolhas políticas. A reflexão, enfim, impõe a reflexividade (autocrítica), ou seja, uma modernização reflexiva que signifique uma autoconfrontação de uma sociedade que põe ela própria em perigo com seus efeitos, não mais assimiláveis no modelo industrial. Basta termos em conta que ainda nem sequer nasceram os seres humanos afetados por Chernobil, para surpreendermonos de nossa incapacidade operativa dada às dimensões de certeza de limites com que lidamos.
…